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Vários laboratórios farmacêuticos, incluindo gigantes europeus e americanos, já produziram medicamentos à base de cannabis no início do século XX.

Foto: Divulgação

Esquenta debate sobre uso medicinal da maconha em doenças neurológicas e psiquiátricas

Publicado em 19/08/2019 às 15:49
Doenças neurológicas e psiquiátricas são condições médicas complexas e multifatoriais que afetam milhões de pessoas, prevalecendo dentre as causas incapacitantes mais comuns. Após a publicação, pela Anvisa, de propostas para a regulamentação do cultivo e produção de medicamentos à base de cannabis no Brasil, o debate em torno do tema se acirrou.
 
Antes tido como um grande tabu, o assunto vem ganhando cada vez mais relevância no meio médico e sendo constantemente discutido em diferentes especialidades. Os próprios pacientes e familiares estão pressionando médicos e autoridades para que o acesso à cannabis medicinal seja democratizado. Com isso, criou-se um ambiente de diálogo. O assunto envolve entidades de classe e associações de especialidades, instituições de ensino e pesquisa, jornalistas, legisladores, juristas e entidades regulatórias.
 
Mais de 35 países já regulamentaram o uso da cannabis para tratar pacientes com doenças graves ou raras, como epilepsia refratária, esclerose múltipla, ansiedade, autismo, dor crônica, Alzheimer, entre outras. No Brasil, a importação de produtos a base de canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC) é regulamentada desde 2015 pela RDC 17/2015. Com isso, o número de pacientes beneficiados e médicos prescritores só cresce.
 
Em meio a esse contexto, estudos pré-clínicos e clínicos se intensificam mundo afora. Mas, afinal, qual o real potencial terapêutico da cannabis e em quais tratamentos seu uso pode vir a ser empregado?
 
A Cannabis sativa
O uso de Cannabis sativa é relatado nas sociedades egípcia, chinesa, assíria e hindu há cerca de 10 mil anos. Há relatos históricos do uso medicinal da planta desde 2.700 A.C. Originária da Ásia Central, a planta é empregada por diferentes povos e culturas para diversos fins, principalmente, para têxteis, ritualísticos, recreativos e medicinais.
 
Nas últimas décadas, tem se investigado cientificamente quais são seus constituintes com possíveis utilidades terapêuticas. A Cannabis possui, entre seus componentes, flavonoides, mais de 200 terpenos e mais de 100 fitocanabinoides. Dentre os quais, o THC e o CBD são as principais substâncias psicotrópicas. Estes são os dois fitocanabinoides mais frequentemente associados à potencialidade terapêutica da planta.
 
Vários laboratórios farmacêuticos, incluindo gigantes europeus e americanos, já produziram medicamentos à base de cannabis no início do século XX. No entanto, mesmo com seu histórico de uso medicinal milenar, a Cannabis se manteve por muito tempo como uma fonte de controvérsia, com inúmeras restrições legais ao seu uso. Mais recentemente, com a descoberta do sistema endocanabinoide e seus receptores centrais e periféricos, aumentou o interesse de pesquisadores no estudo da interação desse sistema com os fitocanabinoides, extraídos da planta.
 
O sistema endocanabinoide
O sistema endocanabinoide é formado pelos receptores canabinoides, pelos endocanabinoides, as enzimas metabolizadoras e pelo transportador membranar. Com a elucidação dos receptores canabinoides, os cientistas aguçaram a curiosidade com relação a existência de ligantes endógenos e vêm procurando compreender como intervir na modulação do sistema, seja no emprego de canabinoides sintéticos ou de fitocanabinoides (extraídos da cannabis).
 
Evidências científicas têm mostrado que há disfunção no sistema endocanabinoide em condições patológicas do sistema nervoso central. Canabidiol (CBD) – que não possui efeito psicoativo – e o tetrahidrocanabinol (THC), encontrados na Cannabis sativa, são os principais fitocanabinoides que vêm sendo estudados.
 
Os receptores CB1 estão localizados, preferencialmente, no sistema nervoso central e medeiam os efeitos psicotrópicos dos canabinoides. Estes receptores influenciam o comportamento de diferentes neurotransmissores tais como GABA, glutamato, noradrenalina, serotonina e dopamina, podendo influenciar a cognição, percepção, funcionamento motor, apetite, sono, neuroproteção, neurodesenvolvimento e liberação hormonal (Fonseca et al., 2013; Crippa et al., 2005). São densamente expressos na pars reticulata da substância negra, cerebelo, hipocampo, estriado e córtex frontal, e distribuídos em baixa densidade no sistema nervoso periférico.
 
Os receptores CB2 se localizam, preferencialmente, no sistema imunológico e hematopoiético. E, também, já foram encontrados em algumas áreas do sistema nervoso central. Há uma expressão aumentada deles em algumas patologias, como a dor crônica ou em resposta a eventos de neuro-inflamação e hipóxia-isquemia cerebral.
 
Ansiedade, medo, pânico e depressão
Uma administração oral de CBD (de 70 a 400 mg) em humanos saudáveis  foi capaz de reduzir significativamente a manifestação de comportamentos relacionados à ansiedade, provocados  pelo tetrahidrocanabinol (THC) ou pela simulação de falar em público. Pode-se dizer que há segurança e tolerabilidade da administração oral de uma dose de 600 mg de canabidiol em humanos saudáveis.
 
Em pacientes com os transtornos de ansiedade social ou generalizada, o CBD também produziu um efeito ansiolítico na dosagem de 400 a 600 mg. No contexto dos transtornos de ansiedade e de estresse,  como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), que parece envolver a formação e manutenção de uma memória aversiva inapropriada, mostra que a administração aguda de CBD também seria capaz de atenuar de forma prolongada a expressão de respostas defensivas de ansiedade/medo. Ele também seria capaz de atenuar a expressão de ansiedade/medo de forma duradoura ao facilitar a extinção e/ou bloquear a reconsolidação de uma memória aversiva.
 
Os estudos que avaliaram o efeito do CBD sobre comportamentos associados à depressão ainda possuem pouca relevância, mas os resultados são promissores. Um trabalho mostrou que o CBD atenuou o tempo de imobilidade de ratos quando administrado na faixa de 30 a 200 mg/kg, utilizando o teste do nado forçado. Outro estudo mostrou atenuação da imobilidade de camundongos no teste de suspensão pela cauda em dose única ou repetida de CBD. Shoval et al. (2016) mostraram que houve atenuação significativa da anedonia e um aumento na exploração de objetos novos em ratos Wistar-Kioto (um modelo genético de depressão) tratados com CBD. O que sugere uma melhora na baixa motivação de explorar que estes animais apresentam. A análise do provável efeito antidepressivo do CBD ainda requer estudos adicionais.
 
Esquizofrenia e psicoce
Há estudos mostrando que a administração de CBD em humanos saudáveis por via oral (entre 70 e 600 mg) ou endovenosa (5,0 mg) foi capaz de reduzir significativamente a expressão de hiperlocomoção e de sintomas psicóticos que eram induzidos por drogas psicotomiméticas, tais como o tetrahidrocanabinol  (THC) e a quetamina.
 
Em pacientes esquizofrênicos que eram refratários aos tratamentos convencionais e em pacientes com Parkinson que apresentavam sintomas psicóticos esse efeito também foi relatado, após tratamento por um período de 14 a 30 dias. Também já houve relato que o CBD seria capaz de atenuar a catalepsia induzida pelo Haloperidol.
 
A relação entre o sistema endocanabinóide e a esquizofrenia provém de estudos que relacionaram o uso abusivo de maconha ao aumento do risco de desenvolvimento da doença. E alguns sugerem que o sistema endocanabinóide poderia ser um alvo de farmacoterapias para o seu tratamento.
 
Epilepsia e convulsões
Ainda se sabe pouco sobre os mecanismos envolvidos nas propriedades anticonvulsivantes do canabidiol. Entretanto, o efeito seja observado em diferentes modelos animais para o estudo da epilepsia. Já foram propostos diversos mecanismos como: aumento da atividade inibitória do GABA (Consroe et al., 1982); ativação da via mTOR e consequente diminuição na liberação de glutamato (Goriba et al., 2015); diminuição da expressão de receptores NMDA em astrócitos e modulação de canais de potássio (Zhirazi-zand et al., 2013). Contudo, sabe-se que o sistema endocanabinoide atua com funcionamento similar a um “freio automático” ou “freio de emergência” no cérebro, regulando a transmissão sináptica em condições fisiológicas e patológicas.
 
A administração aguda ou repetida de CBD, produziu efeitos anticonvulsivantes em animais de laboratório. Foi mostrado que o CBD, em regimes de tratamento que variaram de 56 a 365 dias e na faixa de dose de 5,0 a 50 mg/kg, foi capaz de melhorar os sintomas de pacientes humanos com epilepsia resistente, epilepsia febril e por esclerose tuberosa (Devinsky et al., 2016; Gofshteyn et al., 2016; Hess et al., 2016). Tanto as evidências pré-clínicas como as clínicas indicam que o CBD induz um efeito anticonvulsivante/antiepilético, possivelmente com perfil seguro de uso em doses de até 1500 mg/dia. Rosenberg e et al. (2017), no entanto, atentam para interação de fatores farmacológicos e fisiopatológicos, concluindo que a modulação do sistema endocanabinóide pode ser mais complexa do que parece. 
 
Doença de Parkinson
O primeiro estudo que investigou os efeitos do CBD em humanos com Parkinson foi publicado em 1986. Mostrou que a administração oral do CBD nas dosagens de 100 a 600 mg em humanos com Parkinson, em um período de 42 dias, foi capaz de diminuir significativamente a expressão de distúrbios motores tanto em homens como em mulheres.
 
Em pesquisas subsequentes, a administração oral de CBD nas dosagens de 75 a 300 mg em um período entre 28 e 42 dias foi capaz de reduzir sintomas não motores, como as psicoses e o transtorno do sono. Isso ajudou a melhorar o bem estar e a qualidade de vida dos pacientes avaliados. No entanto, não sustentou a melhora dos sintomas motores anteriormente mostrados.
 
Em resumo, as evidências experimentais de que o CBD produz um efeito benéfico em modelos animais de Parkinson e seres humanos com esta doença neurológica são crescentes. O que sugere que o CBD atenua o estresse oxidativo e a perda neuronal, indicando um efeito neuroprotetor (Litle et al., 2011). Os efeitos estariam associados com sua atividade antioxidante, anti-inflamatória e/ou sua capacidade de modular respostas gliais. Entretanto, muitos estudos ainda são necessários para elucidar esse mecanismo de ação.
 
 
Doença de Alzheimer
As evidências experimentais de que o CBD possa produzir um efeito benéfico em modelos animais de Alzheimer são crescentes. Entretanto, ainda são necessários estudos adicionais para compreender melhor vários aspectos. As evidências da relação entre a doença de Alzheimer e o sistema endocanabinóide provêm de análises post mortem. Nelas, se observou que vários componentes desse sistema estão alterados no tecido cerebral desses pacientes (Aso et al., 2016).
 
Esclerose Múltipla
Estudos realizados com animais in vivo e in vitro mostram que o tratamento agudo com canabidiol, com dosagem de 5,0 mg/kg, foi capaz de diminuir a proliferação de células T. E teve importante efeito na melhora dos sinais clínicos da esclerose múltipla. A administração de CBD na dosagem de 10 mg/kg durante um período de 14 dias também resultou em um efeito antiapoptótico contra os processos de neurodegeneração subjacentes ao desenvolvimento da esclerose múltipla.
 
Ficou claro que os mecanismos de ação do efeito do CBD na esclerose múltipla são complexos. No entanto, é possível que o CBD seja capaz de melhorar a neuroinflamação e desmielinização do SNC. Pode também desempenhar um papel na regulação da inflamação, proliferação, sobrevivência e diferenciação celular em disfunções ligadas ao desenvolvimento da autoimunidade, condição observada na esclerose múltipla (Giacoppo et al., 2017).
 
Autismo
Uma publicação de Poleg et al (2018) concluiu que o CBD tem demonstrado algumas propriedades pró-sociais em estudos pré-clínicos. E que é possível que o canabidiol possa ser eficaz como monoterapia ou tratamento adjuvante em algumas das comorbidades mais comuns do portador de autismo, como distúrbios do sono, TDAH, ansiedade e convulsões.
 
Mais recentemente, a conceituada revista Nature divulgou um artigo sobre tema. Nele, foram analisados dados de 188 pacientes com transtorno do espectro do autismo (TEA) tratados com óleo de cannabis contendo 30% de CBD e 1,5% de THC. Depois de seis meses de tratamento, 30,1% dos pacientes relataram melhora significativa dos sintomas; 53,7% relataram resposta moderada; 6,4% relataram melhora discreta; e 8,6% não relataram melhora alguma. 
 
Ambos os trabalhos declararam que há uma grande lacuna sobre o tema. Outros estudos são necessários antes de se afirmar quaisquer conclusões sobre o potencial terapêutico do uso dos canabinoides em pacientes com Transtorno do Espectro do Autismo.
 
Fibromialgia
Uma pesquisa israelense analisou os efeitos do uso de cannabis medicinal em 26 pacientes com fibromialgia. O estudo retrospectivo apontou que 100% deles relataram melhora nos sintomas da fibromialgia em todos os quesitos avaliados, principalmente com relação à dor. Sendo que, pelo menos, 50% deles reportaram ter cessado uso da medicação tradicional após o consumo da cannabis. Efeitos adversos leves foram relatados por oito pacientes, como cefaleia, náuseas, boca seca, sonolência e fome excessiva.
 
 
Efeito entourage
Entourage é um termo de origem francesa (em português significa “comitiva”) usado para denominar o efeito combinado dos compostos da cannabis. Alguns estudos se destinam a estudar esse sinergismo associando THC ao CBD nas terapias, ou mesmo utilizando todo o espectro de compostos terapêuticos da cannabis. Os extratos full spectrum ou mesmo o uso da própria flor preservam os mais de 100 canabinoides, mais de 200 terpenos e centenas de outros compostos presentes na planta, em perfis que variam de acordo com a cepa.
 
No Brasil já há quem tenha autorização judicial para plantar e consumir a flor de maconha vaporizada. Os defensores do Efeito Entourage acreditam que o uso da “planta inteira” seria mais benéfico que o uso de substâncias isoladas. Assim como o consumo de uma laranja seria melhor do que consumir a Vitamina C isolada, por exemplo.
 
Fernández-Ruiz et al. (2013) relataram a possível vantagem de associar as propriedades neuroprotetoras e antioxidantes deste fitocanabinoide com o de outros. Essa conclusão partiu de uma revisão acerca do potencial do CBD em doenças neurodegenerativas. Por exemplo, alguns estudos têm relatado um efeito sinérgico do uso de CBD com THC no tratamento sintomático da Doença de Huntington. Já estudos que investigaram o efeito do CBD na doença de Parkinson apontam para o direcionamento da pesquisa para a busca de combinações de canabinoides em que haja, além da neuroproteção e ação antioxidante, ativação de receptores CB2, mas não CB1. Esse fato levaria a benefícios adicionais da terapia, tal como a redução da bradicinesia. 
 
Autor: 
Rafael Calixto Fernandes
FONTE: pebmed.com.br
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