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Entre 25 de novembro, que é o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher, e 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos)
Foto: Divulgação
Entre 25 de novembro, que é o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher, e 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos), a sociedade se une em torno de diferentes ações que visam a acabar com os casos de violência sofridos por mulheres. O período conhecido como “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres” começou em 1991 durante um encontro no Centro de Liderança Global de Mulheres (CWGL, na sigla em inglês).
Neste ano, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) conversou com especialistas sobre a violência doméstica, já que, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, 79,2% das 79.661 denúncias de violência contra a mulher no Ligue 180 ocorreram em contextos domésticos. Na maior parte dos casos (65,91%), os agressores eram homens com quem as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo, como cônjuges, ex-companheiros e namorados.
O tempo de relacionamento das vítimas com o agressor ultrapassa cinco anos em mais da metade dos registros. Os dados expõem a gravidade e a dimensão das violências sofridas pelas mulheres brasileiras – e dentro de suas próprias casas.
Apesar de um aumento no número de denúncias da violência doméstica, ainda persiste a ideia de que roupa suja se lava em casa. Culturalmente, acredita-se que as questões que envolvem a família devem ficar no espaço privado, afastando a intervenção pública. “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher” é o ditado popular que reflete essa ideia e que mantém a violência entre quatro paredes, desfavorecendo a procura pela ajuda de que a vítima precisa para escapar da situação.
Neste ano, alguns casos de grande repercussão pública também trouxeram à tona este debate, sendo que as redes sociais foram tomadas por frases contrárias ao ditado popular. Mas, se apenas casos que envolvem a violência física são noticiados ou ganham notoriedade, o sofrimento pode ser muito mais invisível e tolerado. Segundo a Psicóloga Grazielle Tagliamento (CRP-08/17992), coordenadora do Núcleo de Diversidade de Gênero e Sexualidades (Diverges) do CRP-PR, a violência, além de física, pode ser psicológica, patrimonial, sexual e moral. “Alguns exemplos são quando a mulher não pode falar o que quer, quando mantém relações sexuais sem vontade, quando o parceiro não a deixa trabalhar, xinga ou menospreza a mulher”, exemplifica. “São formas de violência mais difíceis de serem percebidas, até porque vivemos em uma sociedade que vê a feminilidade como ‘ser passiva’ e a masculinidade como ‘o homem tem sempre razão’”, avalia a Psicóloga.
E sair de uma relação violenta não é uma tarefa simples. Muitas questões estão envolvidas, como medo, vergonha e culpa. “Muitas vezes, quando a mulher está nessas relações abusivas ou violentas, ela acaba não percebendo. Então é importante que quem está fora meta a colher. Aqui entra o papel da rede de apoio. Família, amigos e amigas, colegas de trabalho”, explica Grazielle. Ela também destaca que a intervenção pode acontecer com desconhecidos. “Quando perceber que na casa de vizinhos há gritos, pedidos de socorro, não se cale. Denuncie. Mesmo que a gente ache que pode não ser nada, pode ser algo grave”, diz, referindo-se ao canal de denúncia Ligue 180.
Às vezes a gente se cala como se não fosse com a gente. Mas é com a gente. Qualquer tipo de violência afeta a sociedade.
Psicóloga Grazielle Tagliamento (CRP-08/17992)
“O papel da Psicologia é fundamental no acolhimento e no fortalecimento da mulher, para que ela tenha mais autonomia sobre a sua vida e possa sair desta situação de violência. Também é importante para ajudar a mulher a encontrar e formar a sua rede de apoio”, afirma a coordenadora do Diverges. “Muitas vezes a mulher não sai por pressões da sociedade e da crença de que ‘ele vai mudar’. Mas se manter numa relação abusiva e violenta traz sérios sofrimentos psíquicos, mentais e físicos, ou seja, tem consequências muito sérias para a saúde integral da mulher e da família como um todo”.
O trabalho com os agressores também é parte importante do processo de atendimento psicológico, segundo Grazielle: “Não basta a gente trabalhar apenas com a vítima. É preciso trabalhar com o agressor para que não se perpetue isso em nossa sociedade”. Neste sentido, também é preciso descontruir as normas de gênero. “É o que a Organização Mundial da Saúde chama de ‘masculinidades tóxicas’, que são as masculinidades hegemônicas.”
Por vivermos em uma sociedade heteronormativa, muitas vezes as relações homoafetivas reproduzem padrões de comportamento e violência. “É preciso estar atento, porque muitas vezes as pessoas pensam que, porque é uma relação entre duas mulheres, não há violência, mas existe”, alerta a Psicóloga Grazielle Tagliamento.
Além disso, existe um agravante que torna o fim destas relações mais difícil. “Muitas vezes as pessoas LGBTs, por estarem fragilizadas, permanecem em relações violentas porque há uma grande dificuldade em encontrar e manter relações amorosas. Quando encontram se submetem a relações violentas para não ficarem sozinhas.”
Mas, para todos os casos, é preciso procurar ajuda. “A Lei Maria da Penha também se aplica a pessoas travestis e transexuais, assim como aos homossexuais”, explica a profissional.
A mulher é vítima. Quando culpamos a mulher, ela sofre violência duas vezes. Uma quando ela é violentada na relação e a outra quando a sociedade a culpa.
Psicóloga Grazielle Tagliamento (CRP-08/17992)
Há 18 anos, os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher são coibidos e prevenidos pela Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06). O nome popular para a lei é uma homenagem a Maria da Penha Fernandes, que sofreu diversas agressões do marido Marco Antônio Heredia Viveros (ver box).
A Lei Maria da Penha é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações no enfrentamento à violência contra a mulher em escala mundial. Ela entende como violência as agressões físicas, psicológicas, patrimoniais, sexuais e morais, e garante proteção integral à vítima. Apesar do pioneirismo em reconhecer a violência de gênero no Brasil como uma violação dos direitos humanos, a política não está sendo devidamente aplicada na prática, como explica Eliana Lopes, Coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Paraná.
A defensora relata que o problema começa já na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM). “As DEAMs não estão registrando todos os tipos de violência previstos pela lei, como violência patrimonial ou psicológica. Elas só estão atendendo casos de violência doméstica e física que sejam crimes. Isso barra o pedido de medida protetiva para uma mulher que sofre violência moral, por exemplo”, analisa Eliana. Além disso, ela conta que o problema se intensifica com o grande número de reclamações sobre os atendimentos nas DEAMs, em relatos de profissionais que destrataram as mulheres ou desconfiaram de suas histórias – para Grazielle Tagliamento, é preciso que haja mais capacitação dos profissionais que vão acolher a denúncia, para que a mulher não acabe desistindo de procurar este recurso.
No Judiciário, a questão se repete. “Os juízes não estão nem recebendo os pedidos de medida protetiva que não se enquadram como crimes. Ainda assim, quando concedem a medida, dão prazos muito curtos de 30 dias.” Segundo Eliana, os prazos curtos se devem à última norma instituída pela lei nº 13.641/18, que tipifica como crime o descumprimento da medida protetiva. A justificativa é a de que, como a punição é muito grave para o possível agressor, as validades das medidas protetivas são reduzidas.
Outro problema é a falta de cobertura no Estado. No Paraná, a única Defensoria Pública com posto para atendimento especializado às mulheres em situação de violência é em Curitiba. Nos outros municípios, o serviço não está disponível e mulheres nessas situações recorrem a processos criminais ou, em alguns poucos locais, na área de família.
Quem é Maria da Penha?
Na primeira tentativa de homicídio, em 1983, Maria da Penha Fernandes, que hoje dá nome à lei de proteção às mulheres, levou um tiro de espingarda nas costas enquanto dormia, o que a deixou paraplégica. Alguns meses depois, Marco Antônio Heredia Viveros, seu então marido, empurrou sua cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro.
O agressor só foi condenado em 1996 e preso em 2002, condição na qual permaneceu por apenas dois anos (um terço da pena). Maria da Penha levou o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1998. Em 2001, a Comissão condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a criação de uma legislação para esse tipo de violência.
Fonte: Conselho Regional de Psicologia do Paraná - http://crppr.org.br